RAMALHO ORTIGÃO—EÇA DE QUEIROZ
CRONICA MENSAL DA POLITICA DAS LETRAS E DOS COSTUMES
NOVA SERIE TOMO VIII
Janeiro a Fevereiro 1877
Ironia, verdadeira liberdade! És tu que me livras da ambição do poder,da escravidão dos partidos, da veneração da rotina, do pedantismo dassciencias, da admiração das grandes personagens, das mystificações dapolitica, do fanatismo dos reformadores, da superstição d'este grandeUniverso, e da adoração de mim mesmo.
P.J. PROUDHON
SUMMARIO
A actual situação politica. Conceituosa parabola das moscas e das maselas. O partido revolucionario e o partido conservador. A funcção de um e outro d'estes partidos. Anarchia ou retrocesso. Extincção do partido revolucionario por falta de idéas. Mancommunação conservadora. Philosophica historia de uns almocreves e de um pipo de vinho. A profunda synthese do pipo do Estado.—As inundações. Crise meteorologica. Theoria da chuva. Os irrigamentos e as cheias. As civilisações e os rios. As previsões industriaes e economicas. O regimen das torrentes. A arborisação. Os diques provisorios. As fontes de Palissy. Crise economica. O Estado e o Inundado. Troca de correspondencias. Lisboa durante a crise: os salões, os espectaculos, a imprensa, o parlamento. Intervenção de sua magestade a rainha. A caridade como elemento de administração. Autopsia do anjo. De como este não baixou do ceu. Demonstra-se que saiu da arcada do Terreiro do Paço. A intervenção dos Prelados. As preces para mudar o tempo e os observatorios para o estudar. Os moinhos do Tibet e as cabaças dos Kalmuks. A intervenção da colonia portugueza no Brazil. O brazileiro que parte, e o brazileiro que chega. O patriotismo dos nostalgicos. A commissão de soccorros.—Um banquete militar. O que se passa dentro dos craneos sob a pressão das barretinas.—O centenario da Academia das Sciencias. A tradição academica. A Academia, berço da revolução e da liberdade. Ferreira Gordo, o abbade Correia da Serra, o padre Antonio Pereira, o duque de Lafões, academicos e jacobinos.—O crime do Padre Amaro romance d'Eça de Queiroz.
A situação politica...
Mas, perdão—antes de encetarmos este assumpto, uma pequena historia:
Era uma vez um velho burro. Fora madraço e manhoso. Não conquistára amigos porque os não merecia. Tinham-o lançado á margem no fim da vida. Principiou a viver ao acaso, pelos montes. Um dia achava-se defronte de um vallado, estacado ao sol sobre as suas quatro patas, inerte, immovel, olhando para um cardo secco com os seus grandes olhos redondos e encovados em orbitas esqueleticas, pensando nas vicissitudes da vida e procurando arrancar do seu cerebro, para se consolar, algumas idéas philosophicas.
Passou por elle e deteve-se a contemplal-o um joven asno, no viço das illusões, cheio de amor e de zurros, de alegria e de